Nas últimas décadas temos visto um movimento corporativo global crescente da geração da cultura home-office, que permite aos colaboradores terem um ambiente de trabalho em sua própria residência ou local preferido, de onde realizarão suas responsabilidades como se estivessem no espaço físico da organização.
No Brasil, até o início de 2020 esse movimento vinha em passos tímidos, sendo que as culturas mais ousadas chegavam a permitir uma agenda facultativa algumas vezes por semana, com estações de trabalho móveis no próprio ambiente comunitário profissional. Assim, nesses contextos mais vanguardistas você poderia ver o ‘João’ sentado numa mesa num dia, e no outro dia em outra, sendo que num terceiro ele estaria em casa.
Mas até a chegada do COVID-19 essa cultura parava por aí, quando muito, pois, em geral, o que se via era a possibilidade de as pessoas trabalharem um único dia por semana de suas bases pessoais.
Minha experiência com gente e organizações me deixa algumas interpretações sobre essa lentidão em gerar realidades organizacionais mais sólidas do home-office no Brasil. Dentre elas, cito algumas:
- A cultura brasileira do olho no olho, do abraço, da proximidade, da conexão, da afinidade… “Se não há o ‘olho no olho’, como poderia confiar de verdade?”
- O custo de oportunidade, uma vez que fazer uma transição de cultura dessa magnitude envolve dividir a atenção mental, emocional e física entre os objetivos de lucro e entregas com a mobilização e adaptação ao novo cenário.
- O custo em tecnologias de custo versus de geração de receitas, uma vez que parte do que se dedicaria para gerar vendas seria dedicado à estruturação interna de fluxo de trabalho.
- As implicações trabalhistas, que gerariam a necessidade de várias adaptações legais preventivas num ambiente jurídico e político de incertezas.
- A dúvida sobre a capacidade de autogestão e autorresponsabilização das pessoas, uma vez que o home-office reduz significativamente a possibilidade de microgestão.
- Entre outros…
Mas, apesar de todas essas possíveis justificativas, quando a água bate no pescoço as prioridades mudam, e isso que aconteceu em nosso mercado. O COVID-19 se tornou uma pandemia de consequências imprevisíveis na saúde e na economia, num contexto em que a rapidez da informação gerou uma comoção não vista em pandemias anteriores. E, com isso, a cultura do home-office (ou virtual), até então experimental, teve de virar uma realidade em ritmo imediato.
E daí é aquela história… uma mudança gradual e planejada é melhor digerida pelo cérebro, mas uma mudança imposta por ‘força maior’ gera um enorme sentimento de ameaça, o que causa reações emocionais mais contundentes e uma redução em nossa capacidade imediata de raciocinar de forma lógica, o que é essencial para uma rápida e eficaz adaptação ao novo contexto.
Assim, para ajudar líderes e suas equipes no corrente contexto de mudança VUCA, aponto 10 prioridades que podem ser focadas especialmente pela liderança:
1. Planeje fluxos, funções, tarefas e objetivos.
Agora é hora de se debruçar sobre a mesa – sozinho ou com ajuda para pensar com clareza. Vá do macro para o micro ou vice-versa, se você funcionar melhor assim. Pense nos objetivos, nos fluxos de trabalho e comunicação, nas funções e níveis de senioridade, nas tarefas. Tenha clareza de todo cenário a ser adaptado – como ele é hoje e como deverá ser (mesmo que ainda com muitas incertezas).
Ah, aqui também vale pensar em todos os recursos tecnológicos que serão usados e como – aplicativos, salas de reunião, ambientes em nuvem, grupos de conversa (com suas respectivas regras), etc.
2. Crie uma comunicação clara quanto ao planejamento.
Uma vez realizado o passo 1, comunique de forma didática o que foi estabelecido – tenha fluxogramas se for possível. Alinhe expectativas, bem como o que já é conhecido, o que é experimental e o que é mais obscuro. Você já pode usar o ambiente virtual para fazer isso.
3. Mantenha um canal de comunicação aberta para atender ao fluxo do trabalho, bem como a questionamentos e dúvidas.
Novamente, estabeleça expectativas claras quanto ao que deve ser comunicado e como será comunicado. Lembre-se que esse é um momento de incertezas e que as pessoas terão muitas dúvidas. Tenha paciência para lidar com elas, pois um começo mais claro é a maximização da garantia de fluxos mais produtivos e fluidos no futuro.
4. Tenha consciência que toda mudança representa uma ameaça para o cérebro humano e por isso, até todos se acostumarem, poderá haver reações negativas que terão de ser gerenciadas. Aliás, até mesmo com o próprio líder.
Você também precisará ter paciência com as reações emocionais e possíveis brancos de raciocínio, pois o cérebro, frente a uma potencial ameaça, funciona automaticamente para se defender, aumentando a reatividade emocional e reduzindo a capacidade de raciocínio lógico. Minha recomendação: acolha as incertezas, mas chame à visão de futuro para tirar as pessoas do vitimismo.
Aliás, tenha paciência consigo mesmo… pois é possível que você mesmo passe por esses desafios. Mantenha o foco no gol porque essa fase vai passar!
5. Tenha consciência de que uma nova cultura de trabalho será criada e, portanto, tenha paciência para lidar com a criação e consolidação de novos modelos mentais e novos hábitos coletivos.
Todo novo hábito custa caro para o cérebro, que vai precisar dedicar altos níveis de energia para automatizar questões internas e externas.
Sendo assim, prepare-se para o fato de que a comunicação pontual talvez não gere resposta automática da equipe. Ou seja, falar uma vez – especialmente num contexto de crise – muito possivelmente não gerará respostas imediatas e principalmente consolidadas. Haverá um processo de compreensão cognitiva das informações, do processamento emocional, da transformação de hábitos e geração de novas competências… e cada pessoa terá seu ritmo.
Tenha clareza disso e aprenda a lidar com a frustração e com o processo.
6. Crie formas de medir o progresso dos trabalhos e obtenção de metas.
Assim como você terá gerado clareza quanto ao ponto 1, será importante criar formas de medir o progresso dos trabalhos.
De minha parte, sugiro a priori o raciocínio ‘meritocrático’ e a criação de metas que sejam claras para você e sua equipe, mas que também sejam ‘revisitáveis’ à medida que a nova cultura se estabelece e novos aprendizados podem ser retroalimentados. É a cultura ágil aplicada na veia aqui!
Além disso, você também poderá criar mapas de horas que podem ser alimentados em ambientes virtuais. Um mapa de horas é sempre uma burocracia a mais, então deve ser criado de forma inteligente e eficiente. Pergunte-se: o que é mais importante – as tarefas e horas ou o resultado? E, como o que eu perceber poderá retroalimentar o processo em si?
7. Identifique e eleja pessoas responsáveis por diferentes frentes.
Especialmente no início da transição, saber identificar e investir líderes de diferentes frentes pode ser a linha divisória entre o sucesso e o fracasso. Afinal, você também lidará com todos os desafios expostos até aqui.
Identifique o nível de senioridade dos membros de sua equipe e delegue frentes – o que pode envolver todos os pontos colocados nesse texto. Se você for líder também aqui, as chances de sucesso aumentarão exponencialmente!
8. Aprenda competências do Líder Completo (metodologia R122), que o ajudará a ter uma equipe mais madura, capaz e autorresponsável.
Este ponto tanto vem para reforçar o anterior, como para auxiliar no novo universo de microgestão que decorre do ambiente virtual.
O líder completo é mais do que um expert no negócio, em gestão e em ser mentor de sua equipe… ele é, também (e talvez principalmente) um líder-coach (coach raiz versus nutella!!!), que possui competências específicas para potencializar o amadurecimento de seus liderados, assim incrementando a capacidade de autorresponsabilização, maturidade emocional e tomada de decisão das pessoas, para dizer no mínimo.
9. Promova interações individuais e do grupo como um todo, com temas específicos e agendas pré-definidas.
Neste contexto virtual o brasileiro tem de aprender a ser objetivo, mas sem perder a sua identidade. Estabelecer agendas de reuniões individuais e em equipe, com pautas pré-definidas e até mesmo perguntas de antemão a serem respondidas poderá gerar uma eficácia relevante nos trabalhos.
E aqui será importantíssimo a generosidade. O brasileiro é extremamente relacional e temos de usar isso a nosso favor, pois cérebros buscam se aproximar de recompensas e se afastar de ameaças. Se essas reuniões objetivas e pragmáticas forem cuidadas com generosidade e cuidado nas palavras e forma, não tem como dar errado. É ganho na eficiência e ganho na relação. O cérebro ama quando ganhamos algo!
10. Reforço: Foque insistentemente na comunicação, organização e planejamento.
O décimo ponto é um reforço do que já foi falado antes. Um ambiente virtual demanda clareza a todo momento… e isso vai requerer o desenvolvimento e/ou consolidação de competências-chave para qualquer líder. Aliás, para qualquer pessoa.
Foque em se comunicar cada dia melhor, manter uma mentalidade de planejamento, ser organizado para si mesmo e para os outros. Além disso, acostume-se a ser proativo… você não estará mais ‘a um olhar de distância’ das pessoas, o que é suficiente para que a comunicação não-verbal (responsável pela maior parcela da comunicação) aconteça. Você terá de ser muito mais presente no ambiente virtual para ‘ser visto’, ‘ser lembrado’ e ‘ser usado’…
E, se no ambiente físico um líder já tem de antecipar os movimentos de seus liderados (tipo direção defensiva), mais ainda no virtual. Seja proativo!
E, para finalizar esse texto, deixo aqui algumas considerações. Primeiro, vários dos aspectos colocados aqui podem ser considerados em qualquer contexto de mudança e, por isso, ao focar nos 10 pontos você ganhará muito mais do que a eficácia neste momento em si, mas também poderá desenvolver competências para lidar mais facilmente com mudanças futuras.
Além disso, desconfio que, dependendo do tempo que tivermos de lidar com o COVID-19, nossa cultura organizacional poderá ser definitivamente transformada, como muitas transformações do passado que foram geradas por motivos de força maior. Pode ser que, na balança de prós e contras, descubramos que a cultura virtual pode ser uma realidade que tanto poderá ter a mesma produtividade, como terá o potencial de reduzir o custo pessoal do deslocamento em grandes centros e a melhora da qualidade de vida das famílias e saúde dos indivíduos, uma vez que as pessoas terão mais espaço para cuidar de si próprias e dos seus… sem contar em impactos ambientais da mobilidade urbana, e tantas outras coisas…
E, no final das contas… produtividade e sustentabilidade não têm tudo a ver com isso?
É isso aí.